desabafo, ou, NONE

1.

ó mãe, e freak, e mana, e femme, e camarada, e tu que espreitas, e companheirx, e amigx, e ouvido receoso, e quase-engate, e quase-nada, e namorada, e pedaço meu de osso, e ainda pessoa ao lado, e louca, e aliado, e namorado: estou cansado.

2.

eu, Daniel, estou muitas as vezes em apuros por ser de corpo tendente à verbalização flagrante do fogo que arde o subtexto discrente do dia e da discursividade, o que muito me faz ansioso de fala e quase sempre receoso de conter forma e conteúdo até ao momento mais adequado de articulação. isso faz de mim angustiado, paciente mental, e finalmente autor de uma canção cuja exclusiva necessidade é a estridente expressão da necessidade como estrita premissa do campo da minha (in)acção. assim, se volto a escrever, não é por disforia ou distopia, nem constitui causa de maior alarme: significa só que enquanto trecho breve de uma certa coreografia, sou (ainda) o sujeito de um certo desejo. por isso sim, escrevo-te porque estou aflito: mas nisso há hábito, e já o emparelhamento apaziguante de uma táctica ao atrito.

3.

o cansaço é um estado físico. o cansaço é um estilo. o cansaço é um condicionamento estético. o cansaço é um sintoma político. o cansaço é uma condição de agenciamento. o cansaço é um lugar de inarticulação. e depois de rearticulação. o cansaço é uma configuração cósmica. o cansaço é uma estratégia ética. o cansaço é dissidente e contra-narrativo. o cansaço é uma relação xamânica. o cansaço é um sinónimo para várias palavras sacras. o cansaço é um dos nomes da terra. o cansaço é uma das formas de verdade que importa: performativa, finita, somática, e tão feia quanto bonita.

4.

tomo tanta medicação psiquiátrica para operacionalizar um corpo aproximado do denominador comum, para ser inteligível enquanto corpo-falante e acto-significante, para ser parecido com uma pessoa, para existir dentro de algum tipo de contingente e contestável consenso espacio-temporal, para sorrir vezes suficientes para ser desejável, para não desaparecer completamente da face da terra numa implosão de forças concêntricas que criariam um campo gravitacional hiper-concentrado que destituiria a própria oralidade de coordenadas materiais no mundo, e para me lembrar que o meu nome é de facto uma palavra deste e para este mundo, que por vezes temo nunca despertar o suficiente da sedução de uma amistosa sedação somatico-verbal para sequer ser ouvido por alguém que ame. mas quanto a isso tudo o que posso fazer é esfregar de novo o olho esquerdo com o nó do dedo, pedir o quarto café e continuar a escrever isto no meu telemóvel, com esperanças que pelo menos um asterisco ou cedilha no meio da pulverização palavreada meio que se faça entender perante x Outrx.

5.

mas não é sequer disso que quero falar agora.

6.

imagina isto: um rapaz cisgénero queer, português branco e de classe média, com problemas de saúde mental muito vincados embora de resto altamente privilegiado, com uma barba desgrenhada, olhos muito marcados de sono, feições medianas (medíocres?), gordo e deselegante, pouco sociável e bastante politizado, entra numa sala muito espaçosa e pouco iluminada/num círculo de 50 metros de diâmetro desenhado na areia de uma praia nudista/numa praça iluminada a azul néon no centro de uma cidade historicamente endividada/num parque de estacionamento em que alguém deixou a um canto uma bicicleta com os pneus roxos esvaziados. a sala/círculo/praça/parque de estacionamento é povoada, em 50 porcento da sua capacidade, pelo que convencionamos designar "rapazes gays"; a outra metade é ocupada por um silêncio volumoso, composto por tensões subcutâneas proto-sexuais simultaneamente embrutecedoras e surpreendentemente subarticuladas. chamemos a isto uma erotização a-significante, tesuda e eficaz, do espaço de interacção. assim, a sala/círculo/peaça/parque de estacionamento está sobrelotada de hipótese de sudação. questão: qual o grau de probabilidade de que o nosso hipotético paneleiro gordo e louco desapareça simplesmente da superfície de inscrição de desejo, sendo constituído enquanto peso morto, massa verbal amorfa, morbidez de textura e desfavor de tusa? quais as hipóteses de que ele desapareça do desenho cosmológico colectivo dos corpos em condição de constelação? resposta pendente e provável: que a rasura seja quase total, e ele se sinta à rasca e completamente atonal.

7.

continuamos (todxs) com dificuldades estruturais em desmistificar a geometria sagrada da beleza e falar dela como facto político, leia-se, percebê-la historicamente. e mais ainda esta população abrangente e hipotética de "rapazes gays" se especializa em desperceber da articulação social do tesão como aparato fenomenológico espacio-temporalmente específico, e que tudo antes de ser coisificado desejável no sexo tem de ser primeiro codificado vital e viável no socius. assim, subsistem todo o tipo de zonas de indiscernibilidade, áreas fantasmáticas de não-contacto, continentes subterrâneos de parafraseamento somático, aquém-além do campo do desejo. o campo do desejo por sua vez é, sim, espaço de uma certa inscrição oscilante do acaso e não o nego -- mas também o super-artefacto arquitectónico em que se entre-tecem alguns dos mais potentes códigos: está repleto de, e profundamente espartilhado por, todo o tipo de regras. assim, há corporalidades iluminadas pelo desejo (objectos perfeitos de uma matemática socialmente convencionada) e há corporalidades abjectadas do seu campo de acção (formas monstruosas, ora entediantes ora aterradoras; algumas delas contradições ambulantes, e outras ficções especulativas rarificadas demais). algures entre os dois pólos, articulados con exactidão binária por motivos práticos e desejantes, a maioria dos corpos. e em lado quase nenhum um repósito de imaginação que sustente a travessia estetico-erótica a um lugar mais improvável: assim, o desejo condensa-se no mundo social como massa crítica e, enquantobtal, como críptica maquinaria de violência política.

8.

o corpo-paneleiro tem um hiper-lugar desejante: é situado, propriamente, como corpo de desejo, seja enquanto problema (numa patologização) seja enquanto potência (numa poética). o próprio do querer-paneleiro é, supostamente, que o paneleiro quer: muito. surgem então duas questões carnalmente incutidas na própria substância da experiência dos "rapazes gays": 1. como seria possível ser um corpo-paneleiro desejando pouco, ou mesmo não desejando de todo? e 2. o que é ser corpo-paneleiro enquanto corpo mal-vindo ou mal-visto, enfim, enquanto corpo sub-actualizado pelo desejo alheio de outros corpos-paneleiros? parece-me muitas vezes percepcionar, com pleno fulgor dramático, que 1. não seria de todo; seria então uma aberração contra-taxonómica e 2. é uma condição de contradição, de tensão entre a super-erotização do lugar identitário estrutural de partida e o devir relacional desse corpo desejante. são, portanto, duas maneiras de ser corpo-paneleiro e corpo-impossível: fracassos, ou lugares de fazer-queer (mas deixemos isso para outra altura).

9.

corpo-paneleiro mediano, gordo e louco: fracasso. dói-me. nunca me sinto bonito. sinto uma despertença em relação a circuitos de circulação de querer-fazer que são socialmente determinantes para o que e quem sou. sinto-me pequeno. sinto que a minha imagem de mim não serve para ser agilizada pelo gozo bonito dx Outrx. sinto-me desajeitado. sinto que não concentro em mim a direcção de um código que detesto de qualquer maneira. sinto-me feio. não sei não me sentir feio. e sinto-me cansado disso.

10. 

o cansaço também é, afinal, o registo no corpo dos efeitos do desejo enquanto poder que atravessa o campo relacional.

11.

mas surpreende, ainda, falar da falta de interrogação crítica entre "nós" dos pressupostos e protocolos dos nossos desejos enquanto forças actuantes sobre xs outrxs? anteontem, a E., porque percepcionada erroneamente enquanto corpo-paneleiro, foi apalpada no peito e genitais para averiguar o seu género, e eu quis começar aos gritos. a M., racialmente e esteticamente não-norma, particularizada e bela, chorou há dias por não se crer amável, e eu quis começar aos gritos. o C. contou-me, como só conseguiu ser fodido como preferia (leia-se, como si próprio) ao escolher um hetero objectificador e chauvinista, e eu quis começar aos gritos. o G. comentou, de feições neutras, como foi alvo de discurso de ódio racista num site de engate como os outros, isso pela milésima vez, e eu quis começar aos gritos. e se não gritei é porque cansa, mas também tenho cada dia na sua transitoriedade a relembrar-me que não gritar é igualmente exaustivo, gerando uma compactação do peito que ameaça extrair ao coração falante a maioria das cores que possibilitam sequer a sua retórica. contra isso, não há magia nem mnemónica.

12.

(a relação entre o cansaço e o grito: pretexto para um poema...)

13.

estou a soar demasiado abstracto-técnico de novo, como se ensaiasse pela via da ciência social em vez de espetar no texto o drama de uma pulsão vital? preciso de falar mais cruamente? posso dizer de novo que não ser nunca objecto de um tesão socialmente organizado que já descobriste de qualquer modo ser a deriva monótona de uma partitura autorizada sem teu consentimento e, subsequentemente, pouco participar da economia dos afectos comum pela qual os corpos transitam como focos oscilantes de luz emotiva dói, e para caralho, mas como é que posso adicionalmente esclarecer esse bradar de uma lacuna enquanto lugar de premissa de uma articulação política? que distorções retóricas radicais precisaria de compactar ao nível do meu próprio corpo-significante, como aparato para-epidérmico, para agilizar uma poética de resistência contra estes crimes de mediocridade contra a imaginação ética e a generosidade libidinosa? como, sem querer recair numa insistência na pura intenção que de novo suprima a central lição de que aas contradição é a própria matéria do inconsciente, se poderia criar um programa para corpos futuros em que a implausibilidade desejante seja inclusive um valor? como forçar a ferros a garganta do real social para acomodar no cerne da sua carne vibrante e opaca um espaço em branco, prometido ao corpo imprevisto? como, enfim, rasgar todas as páginas, quer por uma fobia saudável ao facto de o livro já estar escrito, quer por ter pressa para escrever com novos materiais? ou posto de outra forma, como, através de um beijo e de um traço, restituir alguma força que contrarie este cansaço?

14.

assim de repente: as constelações cruzavam-se declinadas em improbabilidade; o gesto desconhecia-se à segunda noite que emergisse; a táctica tacteava um sumo sem resíduo de cretinice ou credibilidade; a crença gestava as suas condições de acordo com ventos plurais; as cordas vocais acordavam depois de engolidos os grossos rebentos de uma promessa; um beijo seria dado sem contra-partida inscrita à pressa; uma guarida seria providenciada à coisa ferida e mutante no espaço próprio do carinho; um ninho de sexos explodiria cintilante no centro do caminho; seria difícil ser corpo neste mundo e, não o querendo, permanecer postx de pele sozinhx. e seria bonito, e tesudo, e fofinho.

15.

mas para já as vagas da minha verbosidade esgotam-se sós sob a evidência da actuação dos corpos na sua obra mecânica e manobra arcana de exclusão. por isso hoje não floresço como pedaço de texto e flor e tesão. hoje sinto-me só ao lado, em desfavor, e cansado.

16.

por isso recapturo a mão e páro.

trama sem meta (nem nada de mórbido)

1.

Preciso de escrever.

2.

Se não escrever não há como salvar o fôlego de se evidenciar perante si próprio e, assombrado pela própria matiz assada, destroçar-se a si próprio a mandíbula pouco elástica para engolir todo o ar que respiramos e tudo deixar na mais dolorosa contradição de termos, no extremo, até mesmo sem metáforas.

3.

Não está a ser um dia fácil. É possível, não que eu seja pessoa capaz de o articular completamente na coisa árida da palavra precarizada pela própria compartimentalização da lógica, que hoje ande por aí uma certa geometria que tende a fazer da coisa a coisa a menos e mais uma coisa opaca, gerando todo o tipo de dificuldades em tocarmos as peles e pertenças das pessoas que mais amamos. Neste contexto, todo o material que produza é incorporação melancólica, e digo-o sem ironia.

4.

Isto é uma maneira tão complicada de falar da tristeza. Mas não passa pela erudição de outra coisa que não do tacto; leia-se, o que quero fazer entender é só que é complicado falar da tristeza porque a tristeza é uma coisa complicada que merece uma fala que complique e nada desagregue para que posteriormente o justifique no cenário clínico ou perante qualquer tipo de arma apontada à vista. Isto chega portanto a ser uma questão de justiça.

6.

Ele dorme do outro lado da parede e eu não faço a mínima ideia quais as condições de possibilidade histórica para que uma coisa tão incrível quanto o seu corpo tenha sido inventada sem que tenha falhado à falha um único detalhe em destaque – que coisa surpreendente, admito, de se ter ao lado da tristeza e mesmo da própria escrita. Mas o fôlego suscita todo o tipo de contradições, como: a de um peito compressado que pela pressa de se ser já não consegue respirar, e assim sendo é possível simultaneamente que eu escreva este texto que assim se escreve, e por outro lado, do outro lado da parede e da escrita, ele exista, só assim.

7.

A parte em que se chora é quase sempre no fim.

8.

O que não me impede de todo o tipo de artifício afectivo: repara que o meu próprio dedo se desarticula enquanto ornamento a pousar na base de um copo de água e no topo suado de uma testa febril quanto ao quanto tem custado este fim-de-semana. Insisto, se o meu corpo inteiro se desfizer da proposta robusta e pelo contrário fizer a concessão a nada de cessar com o jogo do tesão e tornar-se coisa fervida e plana, eu posso ser descascado e de mim feita uma linha branca e lúcida que enfeita até a febre, sim!

9.

O que nunca significaria a morte do desejo: só outra biologia patente na escrita de um dia.

10.

Como uma planta. Uma planta febril patente no fim do dia e da sua escrita: e depois repito.

11.

Quando digo “fôlego” quero dizer “fôlego” e não “falta”. Quando digo “erudição” quero dizer “atenciosidade” e não “conhecimento”. Quando digo “ele” quero dizer “ele” e não “eu”. Quando digo “artifício” quero dizer “construção” e não “falsidade”. Quando digo “tristeza” quero dizer “tristeza” e não “tema”. Quando digo “febre” quero dizer “vulnerabilidade” e não “morte”. Quando digo “planta” quero dizer “raiz” e não “metáfora”. Quando digo “repito” quero dizer “quase começo a falar” e não “repito”. Quando falo defensivamente da morte de desejo quero dizer que tenho medo de mim próprio, e mais nada.

12.

Nada se torna mais claro conforme prossegue, mas há uma certa hipótese, delicada tipo pétala no trecho de asfalto, dedicada como ele do outro lado ao seu próprio detalhe, de que ocorra tentativamente a acumulação de um efeito. Não projecto muito sobre ele: talvez só que se assemelhe ao fio brilhante no topo da testa febril ou ao estame incrível da planta que não vi. Mas sempre posso confiar que de forma desconfiada e afiada no desastre qualquer coisa na entrelinha se acidente e enfie para a frente, no máximo impactando até o sentido lateral só teu, de modo a que me tendo lido tenhas comigo ficado por um bocadinho. Tu que és toda a gente e a ausência perfeita da preocupação. Coisa patética e imperial.

13.

Sim, na melhor das hipóteses: falei contigo entretanto, fabricando um quanto antes que em ti se perspectivou sem urgência sem som. 

14.

E no final de contas, o fôlego não se tomou.

solarengo e lento

1.

olha olha, entretanto reparei que não me respira a pele enquanto não me participes. passo à escrita.

2.

é que tenho estado de te escrever há muito, mas só o sol permite saltear o escorrido, para depois te trazer todo-traçado o ocorrido: que bonito.

3.

(e muitas vezes escrevo-te cartas de amor-amigo que se sentem encarregues apenas do acto da escrita como prova primeira para contigo. mas tento outra vez, que nem sempre bastam.)

4.

começo por reconhecer que o meu cachecol roxo no dia de frouxo-mas-aqui o sol é a primeira trémula e mole realização da divisão que se avizinha: roxos são os teus olhos, músculos e possibilidades.

5.

tu não olhas para mim enquanto escrevo. sinal de gesto imediato ou sou eu que entretanto me ausento?

6.

...e o sol que já verteu dez tons sobre a página sem que eu te tenha dito nada que não um beijo do qual te traga a pestana.

7.

suponho que trago em suspenso declarar que a demarcação do teu lábio ainda me faz existir enquanto búzio e bússola, sem erro mas pleno de eco - e que coisa feliz.

8.

o que é tão difícil de exigir ao mundo como direito quanto o próprio fôlego, quando em seu torno a limpa-língua folgou... e... afogou. digo-te, ninguém nos reconhece, mas por isso mesmo, sê alegre.

9.

durante: alguém berra na rua e bloqueia-me o ritmo raspado da tensão isolada. mas juro que de outro lugar eu não hesito sílaba que seja e não sinto mesmo nada. tu, tropeção-em-devir, deixas-te ouvir também, e finges que disso tomas canção. um talento raro.

10.

um talento raro. mesmo perante o ódio. mesmo perante a divisão. uma rara disposição.

11.

já te beijei entretanto? foi o texto. já repus a partícula? foi o texto. desfez-se a trama oculta e ridícula? foi o texto. veio-te lindo o drama-dos-dois-lados? foi o texto. os actos souberam-te capaz de tanto? foi o texto. e finalmente, diz-me, o laço atraás da tua cabeça, que logo acaba e logo começa, quis estender-se até ao meu farrapo e peça, para me afirmar na íntegra a presença? foi o texto, foi o texto, foi o texto, foi o sexo.

12.

murcha-me a malha da intenção só por te ter já captado a atenção da centelha da tralha que acendo no convexo centro do meu peito em preparação. maneira de dizer. tu-já-me-lês. maneira de dizer: coração.

duração

1.

não tenho escrito poemas, mas o regramento da pele dele solicita-me atenção ao interstício e à coisa posta de lado.

2.

acordamos juntos sob o mapa estendido, os troncos tapados continentes redesenhados na sua real proporção. sul e norte são repostos à cadência afectiva de uma ideia, de maneira que áfrica enorme se expande na distância entre os nossos peitos e consideramos os dois o problema da ida. a cama é demasiado confortável para a verdade e o mapa a nós não nos arrefece, mas darmos primeiros passos na tentativa daquele outro conhecimento significa: algo? ele, pesado com o erro inteiro, com a história a pressionar-lhe cada vez mais o diafragma, diz-me calmo: "seria preciso que cada fronteira fosse um lábio e uma pena de condor; seria preciso até refazer cada corpo na sua relação". eu não posso negar nada de mais frustrado; tento beijá-lo como se fossemos constituir nós nesse acto e só por segundos o outro território, e sinto-me optimista (o que é muito desonesto).

3.

na manhã coberta de neblina, num parque numa capital europeia por arruinar, ele corre para longe de mim, pára, abre os braços, estende-os bem, e começa. cristo-rei, com um sorriso mórbido que o situa bem na outra margem da nossa fisicalidade, ele encontra a sua própria proposta de protesto. se eu der um passo em frente, ele dará um passo atrás, por isso eu respeito a geometria de uma certa sua forma de fazer política pela língua do corpo. angular, ele ergue a cabeça ao ar e articula coisa nenhuma: "se nestes sítios cheios de si nos encontrássemos a nós com a outra linguagem, como a que eu recapitulo ao fazer uma forma como faço, todos os ataques aos centros macro-institucionais e todas as tramas micro-institucionais seriam redundantes, porque a febre que fervesse a rua seria tal que a fortuna recairia horizontal, que é uma maneira de mudar tudo em absoluto e só com um toque". mais honesto o optimismo dele que não comento; neste momento já estou, sem que ele tenha dado por isso, atrás dele, e abraço-o

4.

(ao meio-dia suo as letras: não consigo escrever isto mais concretamente no sentido em que não quero; sinto que a ira e a sua constelação só se articula na justaposição da lira com a política, de maneira que falo um pouco ao lado - sim, sobre a coisa posta de lado - precisamente até porque é ao lado que o real é. será que me faço entender? senão, talvez seja essa a vantagem do poema; preservar algo sobre o que escapou, e esse é o meu respeito privado, e a escrita o meu acto de força isolado.)

5.

ele está a fazer de novo um dos seus usos. é estrela mal-disposta no centro de um chão redondo de madeira; estrela-do-mar mesmo, mas seca e insossa, sem sombra que o sol bate directamente de cima ainda que seja só luz artificial. eu preocupo-me muito que isto seja perturbação qualquer, depressão talvez, malmequer, que eu sei o que são essas ordens; pergunto-lhe, sucessivamente, "esta simetria da forma significa a morte do teu movimento? esta rigidez dos membros comunica que já não me amas? o chão simboliza de forma literal e um pouco aborrecida a própria depressão?". mas ele não me responde nunca, ocupado como está em vazar-se. e eu vejo nada que aconteça que é pior que tudo, e aí assusto-me. mas nada posso dizer. porque seguir com ele pela linha poética, como pela linha política, é saber-lhe o espaço ao corpo que eu não conheço, nem inconsciente. e ele que volte quando puder, inconsistente, a existir-me. a escolha dele e o acidente é nosso; é um preceito generoso, e eu pergunto, mas não mais me queixo.

6.

pelo final da tarde estou a tatuar-lhe com lápis de cera no pescoço suado um sinal de omega. assim prevejo que a duração da marca seja a mesma do corpo: espantosa só, sorridente e sozinha em si. ele queixa-se que lhe dói a cera fresca contra a pele quente porque sabe que a duração do contacto não é para sempre. eu que me armo frequentemente em mais velho apesar de ser mais pequeno ainda que ele digo-lhe só e simples: "como procuro escrever ao lado, a duração da coisa não se coloca. vais ver que dura a coisa boa tanto quanto dura o toque. e sabes tu como sei eu que o toque único dura tudo e o próprio tempo perfura para se repetir irreal. por isso nada está mal". e não é que ele sorria, mas o seu pescoço arqueia-se ainda mais contra a minha mão; os meus dedos molham-se mais de suor na inscrição, e o símbolo último parece-me luminescente e múltiplo na textura raiada da cera molhada que não fica de todo na pele suada.

7.

feitas as coisas complicadas demais para o retrato, que foram muito simples de conseguir no tacto, deitamos-nos de novo lado a lado. eu tremo um pedaço e ele pergunta o que se passa. eu respondo só que tenho medo de não ter traço. e ele que não sabe o que isso significa insiste. eu explico-me: "se todas as coisas que fazemos cumulativamente existirem, temos o problema de sermos. o sonho molhado do meu gesto é só que passemos para aquela entrelinha, estando a fazer entretanto e pouco mais, tendo direito até a desaparecer". ele não sabe dar resposta à minha fricção com a própria história, por isso beija-me simples sem furor nem glória, e baixamos um pouquinho ao lugar calmo e mínimo de ele ser maior que tudo e apenas meu menino. e assim, tendo escrito, eu ainda assim consigo adormecer.

vezes

três dedos trilhados pela pressa de trancar o detalhe do dia. duas vozes que cuscam e conspurcam e revertem o verbo adquirido das cúpulas. um par de possibilidades que podem até e até passam por aí sem que a potência registe o acto apressado. nada de mais: só essa coisa que entretanto e pronto, e muito minúsculo o ponto. assim calham e bem; feitas as contas: de um sol a cem.

the ghosts in you

1.

the value of your bones increases along with the mass deflection of a missing cracked skin-tone and i fold back, fold back, as if variously under the stainless sheets or under attack by fire and steel. amidst all battles of phrase and atom, nothing i say in the usual chanted hum rhymes with you but for the very minor word that i still mean to feel through. is this enough to hold two?

2.

you can't possibly be the angel, the angle of history having repeatedly shirked off its responsibilities, its heady thrust gone berserk on alternate the burst of forever our fevers. but you can't possibly be the boy, having nothing in you that's invincible and beyond the lip; at the small tip of that finger i bit i still spot the wet bit and know you for nothing but the going. who could guess a shape out of this and who could do you a gender still when you generate such speeds of accident and success?

3.

just for a moment or less i know you to be a great event and yet nothing aside from a micro-monument to nothing that endures in thought; just for a moment or less i know you tough, thorough and hot to the touch that trespasses on the cool of your collected odds. what are you still after i have recognized so much and how could i ask you to cease in energy and size?

4.

absolutely nothing is at stake because the pitch of your manouevre will never die out. brief relief: nothing is personhood and you are very great and good.

5.

before the fact, my sisters tend to alleviate my ache with soft science tricks that skirt truths or dicks and put plentifulness in place right at the spot of the shadeless pace of an undoing. it is as simple as it sounds and so supple the fruit too of a frailty that falls through the phallic or historical or gone; when all is said and done i have fallen in hysterics yet not come: the text is prepared. it's not a psychic set-up as much as the pull of the promise; something to do with community and the beautiful compromise. later that day you interrupt my writing and ask me: "who are your sisters? how many parts have you yet to gather? how can we be together in a way that won't put you together? who are my sisters?" i have no answers for any of this, so i call out, call out.

6.

again and again, you allow me to be exactly another. this is just how it goes and as fully as i yield.

7.

before i'm through will the sister-text, the para-text, the meta-text and the like, you ask for a smaller form of attention to the torsion of your muscle under my thumb, at the spot of a geographical depression on your deep tissue where other animals gain traction and human traces do not attract you. i figure myself an apprentice and put my lip right to the irregularity and the rule of your nature erupts: my mouth is done with and we transfigure the molds of a transaction into the channels for a blue translation of "heresy" between me and you. and i'm lucky to be gone.

8.

when i emerge i have learnt nothing but the writing goes through. my lips coalesce again around the luminescent non-presence of your power still diffused. your well-used apparatus rests assured and asunder right under the stainless sheets - or under attack by fire and steel? no matter, battles wait and the bells of the afternoon shatter the shell of a calm only to the extent we allow them to. i hold you right next to nothing and finish my doing, my sisters in sight and your sound in full sway.

9.

this is all i manage for now: the poem's movement over your sleeping body will have to do.