1.
ó mãe, e freak, e mana, e femme, e camarada, e tu que espreitas, e companheirx, e amigx, e ouvido receoso, e quase-engate, e quase-nada, e namorada, e pedaço meu de osso, e ainda pessoa ao lado, e louca, e aliado, e namorado: estou cansado.
2.
eu, Daniel, estou muitas as vezes em apuros por ser de corpo tendente à verbalização flagrante do fogo que arde o subtexto discrente do dia e da discursividade, o que muito me faz ansioso de fala e quase sempre receoso de conter forma e conteúdo até ao momento mais adequado de articulação. isso faz de mim angustiado, paciente mental, e finalmente autor de uma canção cuja exclusiva necessidade é a estridente expressão da necessidade como estrita premissa do campo da minha (in)acção. assim, se volto a escrever, não é por disforia ou distopia, nem constitui causa de maior alarme: significa só que enquanto trecho breve de uma certa coreografia, sou (ainda) o sujeito de um certo desejo. por isso sim, escrevo-te porque estou aflito: mas nisso há hábito, e já o emparelhamento apaziguante de uma táctica ao atrito.
3.
o cansaço é um estado físico. o cansaço é um estilo. o cansaço é um condicionamento estético. o cansaço é um sintoma político. o cansaço é uma condição de agenciamento. o cansaço é um lugar de inarticulação. e depois de rearticulação. o cansaço é uma configuração cósmica. o cansaço é uma estratégia ética. o cansaço é dissidente e contra-narrativo. o cansaço é uma relação xamânica. o cansaço é um sinónimo para várias palavras sacras. o cansaço é um dos nomes da terra. o cansaço é uma das formas de verdade que importa: performativa, finita, somática, e tão feia quanto bonita.
4.
tomo tanta medicação psiquiátrica para operacionalizar um corpo aproximado do denominador comum, para ser inteligível enquanto corpo-falante e acto-significante, para ser parecido com uma pessoa, para existir dentro de algum tipo de contingente e contestável consenso espacio-temporal, para sorrir vezes suficientes para ser desejável, para não desaparecer completamente da face da terra numa implosão de forças concêntricas que criariam um campo gravitacional hiper-concentrado que destituiria a própria oralidade de coordenadas materiais no mundo, e para me lembrar que o meu nome é de facto uma palavra deste e para este mundo, que por vezes temo nunca despertar o suficiente da sedução de uma amistosa sedação somatico-verbal para sequer ser ouvido por alguém que ame. mas quanto a isso tudo o que posso fazer é esfregar de novo o olho esquerdo com o nó do dedo, pedir o quarto café e continuar a escrever isto no meu telemóvel, com esperanças que pelo menos um asterisco ou cedilha no meio da pulverização palavreada meio que se faça entender perante x Outrx.
5.
mas não é sequer disso que quero falar agora.
6.
imagina isto: um rapaz cisgénero queer, português branco e de classe média, com problemas de saúde mental muito vincados embora de resto altamente privilegiado, com uma barba desgrenhada, olhos muito marcados de sono, feições medianas (medíocres?), gordo e deselegante, pouco sociável e bastante politizado, entra numa sala muito espaçosa e pouco iluminada/num círculo de 50 metros de diâmetro desenhado na areia de uma praia nudista/numa praça iluminada a azul néon no centro de uma cidade historicamente endividada/num parque de estacionamento em que alguém deixou a um canto uma bicicleta com os pneus roxos esvaziados. a sala/círculo/praça/parque de estacionamento é povoada, em 50 porcento da sua capacidade, pelo que convencionamos designar "rapazes gays"; a outra metade é ocupada por um silêncio volumoso, composto por tensões subcutâneas proto-sexuais simultaneamente embrutecedoras e surpreendentemente subarticuladas. chamemos a isto uma erotização a-significante, tesuda e eficaz, do espaço de interacção. assim, a sala/círculo/peaça/parque de estacionamento está sobrelotada de hipótese de sudação. questão: qual o grau de probabilidade de que o nosso hipotético paneleiro gordo e louco desapareça simplesmente da superfície de inscrição de desejo, sendo constituído enquanto peso morto, massa verbal amorfa, morbidez de textura e desfavor de tusa? quais as hipóteses de que ele desapareça do desenho cosmológico colectivo dos corpos em condição de constelação? resposta pendente e provável: que a rasura seja quase total, e ele se sinta à rasca e completamente atonal.
7.
continuamos (todxs) com dificuldades estruturais em desmistificar a geometria sagrada da beleza e falar dela como facto político, leia-se, percebê-la historicamente. e mais ainda esta população abrangente e hipotética de "rapazes gays" se especializa em desperceber da articulação social do tesão como aparato fenomenológico espacio-temporalmente específico, e que tudo antes de ser coisificado desejável no sexo tem de ser primeiro codificado vital e viável no socius. assim, subsistem todo o tipo de zonas de indiscernibilidade, áreas fantasmáticas de não-contacto, continentes subterrâneos de parafraseamento somático, aquém-além do campo do desejo. o campo do desejo por sua vez é, sim, espaço de uma certa inscrição oscilante do acaso e não o nego -- mas também o super-artefacto arquitectónico em que se entre-tecem alguns dos mais potentes códigos: está repleto de, e profundamente espartilhado por, todo o tipo de regras. assim, há corporalidades iluminadas pelo desejo (objectos perfeitos de uma matemática socialmente convencionada) e há corporalidades abjectadas do seu campo de acção (formas monstruosas, ora entediantes ora aterradoras; algumas delas contradições ambulantes, e outras ficções especulativas rarificadas demais). algures entre os dois pólos, articulados con exactidão binária por motivos práticos e desejantes, a maioria dos corpos. e em lado quase nenhum um repósito de imaginação que sustente a travessia estetico-erótica a um lugar mais improvável: assim, o desejo condensa-se no mundo social como massa crítica e, enquantobtal, como críptica maquinaria de violência política.
8.
o corpo-paneleiro tem um hiper-lugar desejante: é situado, propriamente, como corpo de desejo, seja enquanto problema (numa patologização) seja enquanto potência (numa poética). o próprio do querer-paneleiro é, supostamente, que o paneleiro quer: muito. surgem então duas questões carnalmente incutidas na própria substância da experiência dos "rapazes gays": 1. como seria possível ser um corpo-paneleiro desejando pouco, ou mesmo não desejando de todo? e 2. o que é ser corpo-paneleiro enquanto corpo mal-vindo ou mal-visto, enfim, enquanto corpo sub-actualizado pelo desejo alheio de outros corpos-paneleiros? parece-me muitas vezes percepcionar, com pleno fulgor dramático, que 1. não seria de todo; seria então uma aberração contra-taxonómica e 2. é uma condição de contradição, de tensão entre a super-erotização do lugar identitário estrutural de partida e o devir relacional desse corpo desejante. são, portanto, duas maneiras de ser corpo-paneleiro e corpo-impossível: fracassos, ou lugares de fazer-queer (mas deixemos isso para outra altura).
9.
corpo-paneleiro mediano, gordo e louco: fracasso. dói-me. nunca me sinto bonito. sinto uma despertença em relação a circuitos de circulação de querer-fazer que são socialmente determinantes para o que e quem sou. sinto-me pequeno. sinto que a minha imagem de mim não serve para ser agilizada pelo gozo bonito dx Outrx. sinto-me desajeitado. sinto que não concentro em mim a direcção de um código que detesto de qualquer maneira. sinto-me feio. não sei não me sentir feio. e sinto-me cansado disso.
10.
o cansaço também é, afinal, o registo no corpo dos efeitos do desejo enquanto poder que atravessa o campo relacional.
11.
mas surpreende, ainda, falar da falta de interrogação crítica entre "nós" dos pressupostos e protocolos dos nossos desejos enquanto forças actuantes sobre xs outrxs? anteontem, a E., porque percepcionada erroneamente enquanto corpo-paneleiro, foi apalpada no peito e genitais para averiguar o seu género, e eu quis começar aos gritos. a M., racialmente e esteticamente não-norma, particularizada e bela, chorou há dias por não se crer amável, e eu quis começar aos gritos. o C. contou-me, como só conseguiu ser fodido como preferia (leia-se, como si próprio) ao escolher um hetero objectificador e chauvinista, e eu quis começar aos gritos. o G. comentou, de feições neutras, como foi alvo de discurso de ódio racista num site de engate como os outros, isso pela milésima vez, e eu quis começar aos gritos. e se não gritei é porque cansa, mas também tenho cada dia na sua transitoriedade a relembrar-me que não gritar é igualmente exaustivo, gerando uma compactação do peito que ameaça extrair ao coração falante a maioria das cores que possibilitam sequer a sua retórica. contra isso, não há magia nem mnemónica.
12.
(a relação entre o cansaço e o grito: pretexto para um poema...)
13.
estou a soar demasiado abstracto-técnico de novo, como se ensaiasse pela via da ciência social em vez de espetar no texto o drama de uma pulsão vital? preciso de falar mais cruamente? posso dizer de novo que não ser nunca objecto de um tesão socialmente organizado que já descobriste de qualquer modo ser a deriva monótona de uma partitura autorizada sem teu consentimento e, subsequentemente, pouco participar da economia dos afectos comum pela qual os corpos transitam como focos oscilantes de luz emotiva dói, e para caralho, mas como é que posso adicionalmente esclarecer esse bradar de uma lacuna enquanto lugar de premissa de uma articulação política? que distorções retóricas radicais precisaria de compactar ao nível do meu próprio corpo-significante, como aparato para-epidérmico, para agilizar uma poética de resistência contra estes crimes de mediocridade contra a imaginação ética e a generosidade libidinosa? como, sem querer recair numa insistência na pura intenção que de novo suprima a central lição de que aas contradição é a própria matéria do inconsciente, se poderia criar um programa para corpos futuros em que a implausibilidade desejante seja inclusive um valor? como forçar a ferros a garganta do real social para acomodar no cerne da sua carne vibrante e opaca um espaço em branco, prometido ao corpo imprevisto? como, enfim, rasgar todas as páginas, quer por uma fobia saudável ao facto de o livro já estar escrito, quer por ter pressa para escrever com novos materiais? ou posto de outra forma, como, através de um beijo e de um traço, restituir alguma força que contrarie este cansaço?
14.
assim de repente: as constelações cruzavam-se declinadas em improbabilidade; o gesto desconhecia-se à segunda noite que emergisse; a táctica tacteava um sumo sem resíduo de cretinice ou credibilidade; a crença gestava as suas condições de acordo com ventos plurais; as cordas vocais acordavam depois de engolidos os grossos rebentos de uma promessa; um beijo seria dado sem contra-partida inscrita à pressa; uma guarida seria providenciada à coisa ferida e mutante no espaço próprio do carinho; um ninho de sexos explodiria cintilante no centro do caminho; seria difícil ser corpo neste mundo e, não o querendo, permanecer postx de pele sozinhx. e seria bonito, e tesudo, e fofinho.
15.
mas para já as vagas da minha verbosidade esgotam-se sós sob a evidência da actuação dos corpos na sua obra mecânica e manobra arcana de exclusão. por isso hoje não floresço como pedaço de texto e flor e tesão. hoje sinto-me só ao lado, em desfavor, e cansado.
16.
por isso recapturo a mão e páro.