quotidiano (com uma ave)

Com carinho e são cinco da manhã.

Ocupo-me dos detalhes da existência dele no mundo. Aparo-lhe os excessos das asas só na medida em que ele mo solicita insistentemente como delicado pré-requisito para se mover nesta cidade sem explodir com todas as geometrias patentes; se ele sabe das cedências de liberdade necessárias para ser um corpo em movimento contínuo, que posso eu pôr em causa que nem bailarino sou, quanto mais ave ou pessoa? Mais pequeno e palpável, tenho andado estas noites só por aí a beber os leites acres que consigo extrair das mamas desdobradas de todos os prédios que encontro sem que isso alguma vez me remova a expectativa e a expectoração, e frequentemente desamparo-me e caio de lado contra outros corpos sem sequer ter noção se eu mesmo tenho asas ou cotos.

Depois, se ele não está por perto, é só uma questão de tempo: atingido um certo ponto de impotência ou impaciência quanto ao meu impasse, deposito sete seixos no pulmão direito e atiro o corpo com ainda mais força não só contra mas até através do corpo alheio até que me espalhe no chão num estrondo, e na queda ouço o meu corpo chocado inteiro, no auge da competência da sua convulsão, a abanar sem interrupção e eis que lá dentro os sete seixos fazem um estrondo, como cacos de vidro a serem lavados dentro do próprio jarro e chegando a rasgar as pontas dos dedos que se inclinam. Isto é o que me acorda todos os dias antes e depois dele, e muitas vezes não significa nada que não a minha própria produção no mundo. E nem estou a dizer isto com a pressa de impressionar o que quer que seja na platina da tua testa que lê; preciso só de relaxar o texto o suficiente para não me sentir de peito constrangido pela coerção quotidiana de fazer sentido de mim sem recortes inteiros de impossibilidade feroz, coisa que frequentemente mata símbolos e corpos e acaba com as melhores partes de todas as estórias. E estes leites que me sabem mal e me sujam demasiado os lábios...

...Perco-me uma e outra vez na linha de raciocínio e o texto sofre com isso, tendo já dado sucessivos passos ao lado de si próprio antes que eu consiga comunicar o chão do que sinto: é que de repente e repetidamente encontro entre os dentes uma pena dele. Quando isso acontece puxo-a muito devagarinho por entre os lábios como se o estivesse a autorizar complacentemente a sair de volta de mim mas só por um pedaço; quando a tenho na mão sopro-a e a desaparição é só a metáfora do espaço silencioso e bonito entre nós. Isto ajuda-me a sorrir apesar de todos os ângulos desajeitados e mal-engendrados desta cidade de antiguidades antipáticas; segue-se que sei melhor, que me sabe melhor, essa noite que tão cedo não acaba. E ainda que o meu peito chocalhe de texto, e as pontas dos dedos se magoem repetidamente com o meu trabalho de acordar, qualquer coisa resta de luminoso e preguiçoso às cinco da manhã quando, com carinho, me deito. Um resto de nada bem precioso e eu então adormeço com ele.

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