águas de junho

Acordas: colocas a hipótese: florescem milhões de acidentes agudos. 

Eles constelam-se sucessivamente e iluminam-te: servem-te o corpo muito bem: acontece saires da cama fora e vários efervescentes eventos adentro: vestes todas as roupas do mundo e continuas inteiramente reconhecível: és dançante mesmo quando inteiramente estático: não há tal coisa como estar inteiramente estático e hoje apercebeste-te disso antes de sequer acordares. 

Segues à rua: há procedimentos certos para isto e o resto: há mecânicas públicas de desenho apurado para a expressão de um propósito: resulta que te juntes calmamente a todas as pessoas na praça: a praça é o lugar de uma certa felicidade de efeitos frequentemente difíceis de conseguir mas igualmente impossíveis de esquecer: quero dizer, pelo menos para tu próprio que tens memória muscular apurada porque nunca estás estático: um bailarino decora parado a coreografia de um protesto numa tarde quente de Verão. 

Memorizas a posição: ainda que esta não tenha qualquer conteúdo específico, saberás reproduzir-lhe o vazio da forma até à morte: a morte tua ou a morte do impacto do verbo calado: tanto faz, que agora essas coisas certamente morrerão juntas: assumiste o único compromisso que podes para com o amor, tu que és bailarino: nem se tratará tanto de uma promessa como de um pequeno favor: trata-se de um amor amigo e antigo, nada de passional e proibitivo: a tua pulsão de dança é pacífica e não-coerciva: os teus tendões têm demasiada inteligência para os clássicos.

Não é que dances: antes, constelas-te sucessivamente e iluminas-te: serves o corpo público muito bem: a praça enche-se de coisas quase tão anónimas quanto a própria pequenez do teu corpo em uso bom: tu não te reconheces em cara nenhuma e isso é um alívio raro: nenhum drama da identificação penetra a esfera de um acto tão privado quanto um protesto: permites-te desaparecer da face da terra várias vezes por segundo: ninguém to leva a mal porque falámos num favor e nunca num dever: os teus deveres são outros e outrures e decisão tua, e esta é uma decisão que dàs aos outros corpos: segue-se que é mais generosa e frágil, e menos possível de verificar enquanto tal.

Tem a duração que tenha: não é fácil quantificar a eficácia de efeitos: o calor em particular ora concentra, ora dissipa a realidade das iniciativas individuais: tu não precisas de ter sempre a certeza do que estás a fazer aqui ou de que linguagem estás a falar agora: falarmos sempre todas a mesma linguagem tem-nos sido das piores desvantagens, seja na política, seja no sexo: com sorte estas questões ultrapassam-te um pouco, a ti que não danças, e não precisas de linguagem nenhuma por a tua ser precisamente a de não-dançar: nesse caso talvez te protejas a integridade do acto com o tipo de silêncio raro que significa sorrisos inteiros de sucesso comunicativo através de todo o suor que o calor te desperte.

Eventualmente acaba: permites-te desacelerar e desconstelar os muitos eventos (acidentes agudos) que te compõem a forma no espaço: permites-te mesmo suspender a responsabilidade de formar o espaço em si com a presença produtiva do corpo: podes até permitir-te respirar noutros ritmos, nem mais nem menos reais ou confortáveis, mas pelo menos mais sustentáveis para um corpo pequeno de prazeres como o teu: reencontras-te na tua própria escala e reconheces a tua cara num reflexo acidental: aproximas-te sucessivamente de resituar o teu nome na língua que não te é própria: o mundo normaliza-se, o que é uma desilusão e uma grande vantagem: abandonas toda a ficção e evento e voltas a caminhar neste mundo: sais da praça sem saber bem o que perdeste.

Acordas: ...

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