até sem refrão

1. 

Estou só a pensar sobre a escrita. Até mesmo sem refrão.


2.

Não será tanto uma questão do quão fundo eu acabe quanto do quão ao lado eu comece, se eu souber ainda apanhar aquela parte da pele de lado e de surpresa. Assim posta a geografia inteira dessa cadeia de micro-cosmos cantantes, não seria precisa visão alguma para percepcionar nas pontas dos dedos o sucesso das cores e a sequência indiscreta das texturas que ondulam e permutam os melódicos e eufóricos efeitos de se ter dito coisa nenhuma. É-me frequentemente apontado que dito isto na escala do seu próprio dizer me arrisco a roer a página até ao rasgão da sua espinha dorsal em tensão, não me restando mais então que o próprio resto da possibilidade da escrita, mas é nisso que insisto. Como se me fosse solicitado que amansasse a musculatura do impossível e eu insolentemente respondesse que não, exigindo que me fosse reposto um minuto de companhia pela densidade esfumada de eventos que em malha faz o corpo alheio e o vento. A isto - que é uma improbabilidade, e uma forma de violência - chama-se frequentemente umas poucas coisas, mas a mais significativa a reter hoje através da diagonal de divergências entre a propulsão da incisão e a vontade de dormir só mais um pouco, é a de "carinho", primeiro a ti que és pequeno e absurdo de tão redondos os teus baixos e convergências, depois a nós que fingimos ser uma comunidade a certas horas finas e muito frias da manhã porque ainda não deixámos de nos contarmos estórias para depois adormecermos melhor, e depois ainda a quem reste porque na última das instâncias é impossível detestar algo de uma forma muito concreta e concentrada quando se presta a atenção de escrita ao mundo e ao próprio, e a ti, e a nós.


3.

Depois de estabelecido um plano estanque branco pano de fundo sobre tudo com uma calmia e optimismo (sim, já lhe chamei de "carinho"), admitir-se-ia o torno da textura da torrente e viria divergente a língua lançar ripas de dúvida e atrito sobre a sequência finita e modesta do dito, só que... talvez não agora? Talvez eu não queira sequer constituir um arco narrativo cuja estrutura basilar e muito antiga se ofereça à leitura miniciosa dos aparatos técnicos de doutores textuais vários (os engenheiros, de quem os mais objectivos serão os psicanalistas e os mais simpáticos os plagiadores); talvez eu consiga o feito raro de não dizer o suficiente. Perante o plano estanque branco pano de fundo sobre tudo como uma calmia e optimismo, vir a usar gestos coreografados mas muito fracos das duas mãos entrelaçadas e tímidas e diminutas ao ponto de convocar uma tempestade que se dissipa antes que um olhar alheio sequer verifique se se trata de uma gota de orvalho ou da tempestade que deitaria esta casa abaixo... isso equivaleria a escrever no obverso da folha sem que ninguém desse por isso, o que significaria por sua vez poder deixar-te um recado (vários recados, todos a dizer o mesmo, e tu suspeitas o quê) ao longo do teu dia, e por mais que desgastasses o corpo ias sempre reencontrá-lo algures por aí. Não contar estória nenhuma; não recapitular a estrutura antiga da letra do inconsciente; não repetir tudo deste mundo no mesmo palco que dita que tudo se repete mesmo que em tudo seja novo; não ambicionar mais do que uma troca de palavras nos intervalos do tempo que dás ao teu corpo só por si: estas são algumas das coisas com as quais me posso ocupar a partir do momento em que decido que o texto não tem de ter torrente nenhuma e que mesmo assim se lhe permite uma textura - mesmo que não saiba eu dar-lhe o nome.


4.

Não tem sido tanto uma questão do quão fundo eu acabe quanto do quão ao lado eu comece, se eu sei ainda apanhar aquela parte da pele de lado e da surpresa. Se tiver técnica parva e acidentada o suficiente para ser feliz nesse ofício, consigo sacar do próprio corpo vários orgãos dispensáveis ao próprio mas indispensáveis ao ritmo e à escala do dito, podendo mesmo prestar favor e fidelidade à enormidade de um facto e até adiar a vontade de dormir o suficiente para te dizer a ti mais uma parte disto. De resto, se não quero que nenhum combate me povoe o texto, hoje que finjo pelo meu bem que está tudo ganho e garantido pela qualidade assombrosa de um peito que é propriedade comum, o texto não tem motivos nem para continuar nem para acabar, restando-me deixar que ele se vá gaguejando para fora de si e de cena de acordo com os seus próprios pequenos impasses de fala, que são sempre infinitos, generosos e muito duros. Eu mexo nestas matérias (palavras, afectos, imagens, lumes vários) à espera que isto decida por si e por mim, e se eu me deixar ultrapassar - se eu não quiser "ter razão" -, significa a pequena vitória do passáro sair à luz e circular a órbita da árvore ciente da sua existência e permitir-se um refrão. E isto é daquelas coisas muito pequenas que não sei explicar de todo, e também o primeiro facto da arte.


5.

Aqui: o refrão.


6.

O que só me permite acabar em parte alguma.

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