dez traços no sítio

1.

Esta palavra lambe-se frequentemente, dividida entre a fixação auto-erótica e a percepção bem legítima de que é a mais bonita das potências da percepção. Quando tiver os seus sentidos e sais bem preparados, porá as poucas modéstias que lhe restam de parte, de volta aos pós da sua proposição, para se propulsionar através do espelho que parte e espetar-se contra o corpo expectante sem aviso. E de que pode este corpo queixar-se? Será então revestido pela vertigem de verbos de um acontecimento que o reduz a enormidades da visão; tornar-se-á tão escuro quanto a mais escondida das pedras deste percurso e comportará os traços de todos os fumos da face; sucintamente, será o depósito dos simples lutos que temos levado a cabo pela estrutura da estória, nós que a favor da futuridade revertemos várias linhas de raciocínio e racionamento, com a fé de que o favor surta efeito maior que a circunscrição dos espaços que nos tem morto os gestos.

2.

A palavra é "desejo".

3.

Juntamo-nos três ou quatro na praça para estudar essa cansada questão da fractura do corpo. Não posso dizer que alguma vez tenha sido fácil este trabalho, que contraria não só toda a história da metafísica ocidental como ainda todas as micro-percepções acidentadas produzidas pelo discernimento superficial das nossas peles demasiado disciplinadas. Mas fazemos os possíveis, mesmo cansando-nos e descentrando-nos, ou precisamente na medida em que cansarmo-nos e descentrarmo-nos nos quebre a cabeça o suficiente para que se quebre em si a estória-da-cabeça e consigamos então percepcionar melhor a fractura - percepcionar melhor o corpo em si. Chegamos ao final da tarde sem conclusões: é que a fractura se desdobra; não só entre o corpo e a mente mas entre o corpo e o corpo, e ainda entre o corpo e o símbolo e entre o corpo e o próprio símbolo-de-si, de maneira que observando a fractura não sabemos já se o seu papel não será produzir espirais de fissuras e dobras na percepção de si - se esta não será a própria estória do corpo-em-si -, ou se somos nós fracas e fissuradas demais de percepção para inventar uma potência que responda em pleno aos delicados desdobramentos da fábula. Quando anoitece os nossos corpos cansados e descentrados resignam-se às suas próprias fissuras; a fractura fala mais alto que a fala de si: dormimos sem soluções.

4.

Só queria misturar os líquidos certos para ver de entre a mixórdia emergir a flutuar o corpo concentrado e compacto da doença. A "fractura do corpo" referir-se-ia então mais concretamente à linha de desalinhamentos que percorre na condição patológica a espinha dorsal e a articulação do discurso. Com ferros, pegaria no corpo consolidado da doença para a pôr de barriga para baixo na toalha. Com ferros, esticaria todos os seus membros para relaxar as suas contracturas verbais, dispondo-a como uma estrela deitada: estrela de símbolos dispostos com fôlego e forma entre si. Com ferros, perfuraria as suas costas para encontrar entre as costelas as orbes de nexo que lhe restem na contradição que repousa. E com ferros, arrancaria cada parte de si e lançá-la-ia contra a parede de fundo das minhas preocupações, cada naco batendo com um baque surdo contra fundo preto nenhum e acabando-se a consternação e mesmo a própria conversa. Ferros não me faltam: tenho a minha visão e os meus verbos. Restam os líquidos, que repetidamente me resistem ao toque, sendo o trauma tão difícil de situar na superfície da mistura como poeira vagamente dispersa sobre a sua superfície luminosa e multicolor.

5.

A doença é a "depressão". Mas isto eu não precisava de ter dito, pois não? Porque é óbvio que a única doença de que um texto pode tratar, e que um texto pode tratar, é aquela que é de ordem propriamente literária.

6.

Todos estes fracassos frequentemente atenuam a ferocidade com que nos compomos como "nós". Nessas horas frágeis em que o conjunto ameaça dissipar-se sob a pressão das divergências ruidosas entre a realidade o futuro próprio dos nossos corpos, sentimos vagas de medo sucessivas que percorrem o todo como uma vibração. Combater essa vibração implica exercitar a memória: saber ainda que só nos somos porque nos encontrámos, e não menos importante, que só nos reencontraremos se nos continuarmos a sermos. Combater essa vibração implica exercitar os músculos: fazer por ainda nos sermos ao encontro umas das outras, e fazer por ainda situar a acção em si na segurança de nos termos encontrado primeiro. Isto soa abstracto demais? Quero só dizer que quando nos assustamos umas com as outras só temos de nos lembrar que nos assustamos umas com as outras na medida em que somos partes enormes e efervescentes, e que é precisamente por sermos partes enormes e efervescentes que nos desejámos à primeira e voltaremos a desejar. Assim posto, é uma questão de tempo até que nos recobramos na vontade mútua, e a contra-vibração (sim, enorme e efervescente) desse reencontro dissipará o medo em si, determinando a malha de qualquer coisa maior - quase tão grande quanto a palavra "comunidade".

7.

Mas estes dias não são de facto fáceis, e às vezes as noites são piores.

8.

Sete de nós acordamos de sobressalto por subitamente sentirmos reposta a resposta comum ao problema de fundo, e isto é algo tão simples quanto uma aliança nas horas mais frias. Desistimos da fractura do corpo por mais um dia ou semana que seja: sendo efervescentes e enormes, temos também de ser mínimas e humildes, quando o facto do corpo nos ultrapassa completamente as mãos e os mantras, e todas as esquemáticas já se corroem com o desgaste do dia sobre-investido. Mas temos uma ideia, que é o valor animal último e coisa boa como cosmos, que nos vale termo-nos encontrado até agora e virmo-nos a encontrar depois. Abordamos então o corpo com as hesitações ritualísticas de quem reconhece que a timidez é uma humildade perante o excesso mas também com a certeza apurada de quem se convenceu de que o futuro vem à tona ainda hoje por ter falado em voz alta um desejo. Abordadas e apuradas por algo maior que nós, avançamos.

9.

Com múltiplas mãos sem nome e número mas muito bem capazes de nomear e numerar, manejamos o vulto verbal do corpo com uma velocidade rara e feliz, relembrando-nos da técnica antiga e escondida de fazer o facto acontecer. Sem pressas mas pressionadas pela bondade da evidência das sensações, levamos tesouras às partes menos potentes do corpo e recortamos trechos de carne e osso e ruído para constituir novo sentido. Nacos de gordura e músculo cobrem-nos as mãos de gula e robustez, conforme nos convencemos de que conseguiremos a coisa rara e um ganho. Às altas horas removemos já bocados suficientes do todo para que este seja irreconhecível, abocanhado como é por uma vontade maior e melhor de o compor para lá dos seus próprios termos e tramas. Eis que podemos passar a implantar um instante cósmico na micro-coreografia do corpo conspurcado com alguma confiança e à vontade. Reconstruimos o conjunto para que cada parte se potencie e palreie, pondo em causa todas as outras da forma mais feliz e eficaz, tal e qual nos pomos em causa umas às outras todos os dias e noite para sermos essa coisa quase comunidade que somos. A contra-vibração emerge: fissurado ou não, este corpo é capaz de falas muitas e muito fáceis de ouvir no corpo alheio que se inclina expectante. Sim, este próprio corpo sentiu a palavra propulsionar-se contra si através do espelho e abrir em flores e possíveis as faces e pontos vários deste conjunto de carnes e partes opacas. Aceleramos pela sensação de que o futuro vem tão rápido quão rápida vá a produção das nossas mãos, mãos essas agora livres de qualquer resíduo do viril e da imbecil vontade de dominar. Não domesticamos coisa nenhuma; só determinamos a probabilidade de um acidente que capacite o corpo sorridente de se extraviar pela nova e outra via de si. Nem nos cansamos tão cedo, sabendo que conseguir este corpo é conseguir o nosso novo corpo em si. Concentramo-nos até que as nossas cabeças se teçam conjuntas na possível tessitura da nova figura que emerge insegura e bonita, cada vez mais inumeráveis e inomináveis mãos ocupando-se do labor de tecer antigos lábios e novas vértebras na forma inversa e lábil de uma nova figura no mundo… Finalmente, respiramos: é de manhã e inventámos o novo órgão.

10.

E aí, posto o simples e o possível em causa como dádiva ao mundo, se o dia não foi de todo fácil, ao menos a noite será melhor.

Sem comentários:

Enviar um comentário