duração

1.

não tenho escrito poemas, mas o regramento da pele dele solicita-me atenção ao interstício e à coisa posta de lado.

2.

acordamos juntos sob o mapa estendido, os troncos tapados continentes redesenhados na sua real proporção. sul e norte são repostos à cadência afectiva de uma ideia, de maneira que áfrica enorme se expande na distância entre os nossos peitos e consideramos os dois o problema da ida. a cama é demasiado confortável para a verdade e o mapa a nós não nos arrefece, mas darmos primeiros passos na tentativa daquele outro conhecimento significa: algo? ele, pesado com o erro inteiro, com a história a pressionar-lhe cada vez mais o diafragma, diz-me calmo: "seria preciso que cada fronteira fosse um lábio e uma pena de condor; seria preciso até refazer cada corpo na sua relação". eu não posso negar nada de mais frustrado; tento beijá-lo como se fossemos constituir nós nesse acto e só por segundos o outro território, e sinto-me optimista (o que é muito desonesto).

3.

na manhã coberta de neblina, num parque numa capital europeia por arruinar, ele corre para longe de mim, pára, abre os braços, estende-os bem, e começa. cristo-rei, com um sorriso mórbido que o situa bem na outra margem da nossa fisicalidade, ele encontra a sua própria proposta de protesto. se eu der um passo em frente, ele dará um passo atrás, por isso eu respeito a geometria de uma certa sua forma de fazer política pela língua do corpo. angular, ele ergue a cabeça ao ar e articula coisa nenhuma: "se nestes sítios cheios de si nos encontrássemos a nós com a outra linguagem, como a que eu recapitulo ao fazer uma forma como faço, todos os ataques aos centros macro-institucionais e todas as tramas micro-institucionais seriam redundantes, porque a febre que fervesse a rua seria tal que a fortuna recairia horizontal, que é uma maneira de mudar tudo em absoluto e só com um toque". mais honesto o optimismo dele que não comento; neste momento já estou, sem que ele tenha dado por isso, atrás dele, e abraço-o

4.

(ao meio-dia suo as letras: não consigo escrever isto mais concretamente no sentido em que não quero; sinto que a ira e a sua constelação só se articula na justaposição da lira com a política, de maneira que falo um pouco ao lado - sim, sobre a coisa posta de lado - precisamente até porque é ao lado que o real é. será que me faço entender? senão, talvez seja essa a vantagem do poema; preservar algo sobre o que escapou, e esse é o meu respeito privado, e a escrita o meu acto de força isolado.)

5.

ele está a fazer de novo um dos seus usos. é estrela mal-disposta no centro de um chão redondo de madeira; estrela-do-mar mesmo, mas seca e insossa, sem sombra que o sol bate directamente de cima ainda que seja só luz artificial. eu preocupo-me muito que isto seja perturbação qualquer, depressão talvez, malmequer, que eu sei o que são essas ordens; pergunto-lhe, sucessivamente, "esta simetria da forma significa a morte do teu movimento? esta rigidez dos membros comunica que já não me amas? o chão simboliza de forma literal e um pouco aborrecida a própria depressão?". mas ele não me responde nunca, ocupado como está em vazar-se. e eu vejo nada que aconteça que é pior que tudo, e aí assusto-me. mas nada posso dizer. porque seguir com ele pela linha poética, como pela linha política, é saber-lhe o espaço ao corpo que eu não conheço, nem inconsciente. e ele que volte quando puder, inconsistente, a existir-me. a escolha dele e o acidente é nosso; é um preceito generoso, e eu pergunto, mas não mais me queixo.

6.

pelo final da tarde estou a tatuar-lhe com lápis de cera no pescoço suado um sinal de omega. assim prevejo que a duração da marca seja a mesma do corpo: espantosa só, sorridente e sozinha em si. ele queixa-se que lhe dói a cera fresca contra a pele quente porque sabe que a duração do contacto não é para sempre. eu que me armo frequentemente em mais velho apesar de ser mais pequeno ainda que ele digo-lhe só e simples: "como procuro escrever ao lado, a duração da coisa não se coloca. vais ver que dura a coisa boa tanto quanto dura o toque. e sabes tu como sei eu que o toque único dura tudo e o próprio tempo perfura para se repetir irreal. por isso nada está mal". e não é que ele sorria, mas o seu pescoço arqueia-se ainda mais contra a minha mão; os meus dedos molham-se mais de suor na inscrição, e o símbolo último parece-me luminescente e múltiplo na textura raiada da cera molhada que não fica de todo na pele suada.

7.

feitas as coisas complicadas demais para o retrato, que foram muito simples de conseguir no tacto, deitamos-nos de novo lado a lado. eu tremo um pedaço e ele pergunta o que se passa. eu respondo só que tenho medo de não ter traço. e ele que não sabe o que isso significa insiste. eu explico-me: "se todas as coisas que fazemos cumulativamente existirem, temos o problema de sermos. o sonho molhado do meu gesto é só que passemos para aquela entrelinha, estando a fazer entretanto e pouco mais, tendo direito até a desaparecer". ele não sabe dar resposta à minha fricção com a própria história, por isso beija-me simples sem furor nem glória, e baixamos um pouquinho ao lugar calmo e mínimo de ele ser maior que tudo e apenas meu menino. e assim, tendo escrito, eu ainda assim consigo adormecer.

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