trama sem meta (nem nada de mórbido)

1.

Preciso de escrever.

2.

Se não escrever não há como salvar o fôlego de se evidenciar perante si próprio e, assombrado pela própria matiz assada, destroçar-se a si próprio a mandíbula pouco elástica para engolir todo o ar que respiramos e tudo deixar na mais dolorosa contradição de termos, no extremo, até mesmo sem metáforas.

3.

Não está a ser um dia fácil. É possível, não que eu seja pessoa capaz de o articular completamente na coisa árida da palavra precarizada pela própria compartimentalização da lógica, que hoje ande por aí uma certa geometria que tende a fazer da coisa a coisa a menos e mais uma coisa opaca, gerando todo o tipo de dificuldades em tocarmos as peles e pertenças das pessoas que mais amamos. Neste contexto, todo o material que produza é incorporação melancólica, e digo-o sem ironia.

4.

Isto é uma maneira tão complicada de falar da tristeza. Mas não passa pela erudição de outra coisa que não do tacto; leia-se, o que quero fazer entender é só que é complicado falar da tristeza porque a tristeza é uma coisa complicada que merece uma fala que complique e nada desagregue para que posteriormente o justifique no cenário clínico ou perante qualquer tipo de arma apontada à vista. Isto chega portanto a ser uma questão de justiça.

6.

Ele dorme do outro lado da parede e eu não faço a mínima ideia quais as condições de possibilidade histórica para que uma coisa tão incrível quanto o seu corpo tenha sido inventada sem que tenha falhado à falha um único detalhe em destaque – que coisa surpreendente, admito, de se ter ao lado da tristeza e mesmo da própria escrita. Mas o fôlego suscita todo o tipo de contradições, como: a de um peito compressado que pela pressa de se ser já não consegue respirar, e assim sendo é possível simultaneamente que eu escreva este texto que assim se escreve, e por outro lado, do outro lado da parede e da escrita, ele exista, só assim.

7.

A parte em que se chora é quase sempre no fim.

8.

O que não me impede de todo o tipo de artifício afectivo: repara que o meu próprio dedo se desarticula enquanto ornamento a pousar na base de um copo de água e no topo suado de uma testa febril quanto ao quanto tem custado este fim-de-semana. Insisto, se o meu corpo inteiro se desfizer da proposta robusta e pelo contrário fizer a concessão a nada de cessar com o jogo do tesão e tornar-se coisa fervida e plana, eu posso ser descascado e de mim feita uma linha branca e lúcida que enfeita até a febre, sim!

9.

O que nunca significaria a morte do desejo: só outra biologia patente na escrita de um dia.

10.

Como uma planta. Uma planta febril patente no fim do dia e da sua escrita: e depois repito.

11.

Quando digo “fôlego” quero dizer “fôlego” e não “falta”. Quando digo “erudição” quero dizer “atenciosidade” e não “conhecimento”. Quando digo “ele” quero dizer “ele” e não “eu”. Quando digo “artifício” quero dizer “construção” e não “falsidade”. Quando digo “tristeza” quero dizer “tristeza” e não “tema”. Quando digo “febre” quero dizer “vulnerabilidade” e não “morte”. Quando digo “planta” quero dizer “raiz” e não “metáfora”. Quando digo “repito” quero dizer “quase começo a falar” e não “repito”. Quando falo defensivamente da morte de desejo quero dizer que tenho medo de mim próprio, e mais nada.

12.

Nada se torna mais claro conforme prossegue, mas há uma certa hipótese, delicada tipo pétala no trecho de asfalto, dedicada como ele do outro lado ao seu próprio detalhe, de que ocorra tentativamente a acumulação de um efeito. Não projecto muito sobre ele: talvez só que se assemelhe ao fio brilhante no topo da testa febril ou ao estame incrível da planta que não vi. Mas sempre posso confiar que de forma desconfiada e afiada no desastre qualquer coisa na entrelinha se acidente e enfie para a frente, no máximo impactando até o sentido lateral só teu, de modo a que me tendo lido tenhas comigo ficado por um bocadinho. Tu que és toda a gente e a ausência perfeita da preocupação. Coisa patética e imperial.

13.

Sim, na melhor das hipóteses: falei contigo entretanto, fabricando um quanto antes que em ti se perspectivou sem urgência sem som. 

14.

E no final de contas, o fôlego não se tomou.

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