tens as minhas mãos bonitas

1.

Quando me vou abaixo falo contigo.

2.

O conjunto da mensagem sendo: "conseguiste cortar as minhas unhas na medida certa para que não te arranhem de vibratos quando adormeces de escantilhão entre os sons ao meu lado, correndo tu então o risco que surjam da tua pele parda gotículas gordurosas de visibilidade. Falaste falseto entretanto? Só ouvi o topo da nota capitular na secura capotada do meu crânio expectante e ensonado; cantaste que estávamos mais próximos, ou que a narrativização disto é impossível, ou os dois? Podes só abanar a cabeça para responder e eu vou interpretá-lo como 'todas as respostas acima são possíveis e nenhuma tem significância ou sequer o mínimo de sumo acidental', o que pode deixar-me mais próximo de ti - ou tornar a narrativização disto impossível - ou os dois. Olho para ti e levo o indicador à boca e a unha não me rasga o seu tecto, nem me preocupo com nada".

3.

No passeio oposto ao meu encontro um cão morto. O cão acorda e vira-se contra mim: "mas o que pensas que estas névoas de gesticulação furiosa caídas sobre a minha cabeça vão fazer pela integridade da minha materialidade neste mundo pequeno agora que me confirmas morto e que me confirmas cão? Como é que te parece legítimo aproximares-te de mim sequer quando foi o teu pai que me forçou a aproximar-me - e isto é só uma metáfora e é só real - das tuas irmãs, sem que eu tenha sentido sequer o cheiro a menstruação ou merda que me colorisse a sensação? Porque é que invocas da morte - esse mesmo lado da menstruação e da merda, e do outro tu - um cão morto só para que possas verbalizar? Quem é que pensas que és?".

4.

Eu caio para trás através da possibilidade de uma "conversa" e reconsidero a estrutura do que conto.

5.

Entretanto tu fazes tempo à minha espera, estalando os dedos e depois as designações, que têm as suas próprias dobras convexas e improváveis. E eu que não estou lá ouço-te murmurar que não tens a certeza que a Terra alguma vez tenha dado as boas vindas a um número que não o "dois", o que não te parece grande estratégia para os amores; eu que já lá estive ouço-te murmurar que não tens a certeza que a História tenha sido escrita com as pontas sujas dos teus dedos em mente, o que entristece estruturas inteiras de ti; eu que hei-de lá chegar ouço-te murmurar que não tens a certeza que a palavra seja para ti, ainda que tenhas massajado a boca inteira com os seus volumes transparentes e frios. Tu que fazes tempo estalando os dedos e depois a designação determinas até que em caso de dúvida, podes dobrar-me na consideração a mim, sendo que me ouviste outrora murmurar que não tinha a certeza se dadas as obstrucções nas minhas vias mais ou menos lácteas e mais ou menos lúdicas eu seria uma pessoa sequer - e eu que só te queria prometer, na medida dos possíveis, que isso era só maneira de te amar.

6.

Ainda assim, quando chego, acalmaste as mãos e a mente sobre a escuridão desbotada da mesa e tens a testa imbutida de probabilidades de beijo: que bom; é que não notas sequer em mim o cheiro a cão - ou a morte, ou a menstruação - ou ao outro lado do qual eu não estou - nem mesmo ao alcatrão da estrada que passei - e queres só estar próximo de mim, ou que eu nos aproxime de tornar isto inenarrável, ou os dois. Quando damos as mãos temos mais que duas em mente; vamos mesmo rentes à possibilidade de mais, que é só um sorriso manso entretanto e nada por aí além. Que boa então a sensação que deixas cair sem significância mas plena de sumos; que boa a metáfora e matéria permitidas na pertença permutada pelo aperto das partes: sim, eu aproximo-me de ti, porque a sensação agora mesmo caída de ti...

7.

E depois, como antes disto tudo: o beijo.

8.

Quando voltamos não vejo o cão do outro lado da rua mas podia jurar-te - se te falasse disto - que adivinho à esquina do edifício à frente uma mancha castanha no chão - de menstruação ou de merda ou de metáfora ou de sangue de cão - que me significa conspurcações inteiras da cumplicidade que tenho com o mundo, quando se complicam as arritmias da partitura a favor do aperto no peito que é perceber a potência do facto e do seu fruto bruto. Não digo que vá ter pesadelos sobre isto, mas também admito que os meus sonhos não descolarão da superfície invertida do chão em que se fundamentam as imagens escuras do futuro mal-vertido sobre o corpo deitado do cão. Acendo o cigarro convencido que o fumo que exalo pode arrastar para fora figuras de sensação e imprimi-las de volta à sua pertença no chão: mas o fumo sobe-me e o meu olhar também, até que me distraio da minha própria estratégia de salvação. Então, à janela, olho para mim.

9.

As minhas unhas parecem-me longas demais.

10.

Então, de debaixo dos lençóis, olho para ti.

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